segunda-feira, 4 de novembro de 2024

CFM cria monopólio inconstitucional e ilegal com plataforma digital.

 Resolução determina validação e armazenamento obrigatório no Conselho de todos os atestados médicos do Brasil 



*Por Fernando Aith 

Por meio da Resolução CFM 2.382/2024, o Conselho Federal de Medicina (CFM) instituiu a plataforma Atesta CFM, definida como “o sistema oficial e obrigatório para emissão e gerenciamento de atestados médicos, inclusive de saúde ocupacional, em todo o território nacional, sejam em meio digital ou físico” (Art. 1º). 

A resolução obriga todos os médicos a aderirem a esta plataforma digital para a emissão de atestados médicos. Uma leitura atenta do texto normativo apresentado permite aferir que se trata de novo abuso de poder regulatório por parte do CFM, na medida em que contraria e viola dispositivos constitucionais e legais do ordenamento jurídico nacional. 

O que diz a resolução? 

O artigo 2º da resolução dispõe que “os atestados médicos, inclusive de saúde ocupacional, deverão ser emitidos obrigatoriamente por meio da plataforma Atesta CFM ou por sistemas integrados a esta, e preferencialmente de maneira eletrônica”. 

A resolução, ao obrigar os médicos a validarem os atestados em uma única plataforma, cria um monopólio de emissão e validação de vários tipos de atestados médicos, considerados em seu sentido amplo. Não há especificação na norma sobre quais são os atestados médicos incluídos em seu escopo. Seja qual for a abrangência dos documentos incluídos, fato é que se cria um monopólio que não encontra respaldo na Constituição Federal e na legislação nacional vigente. 

Atualmente, tais documentos são emitidos de diversas formas em todo o país por médicos que atuam no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) ou no sistema privado de saúde em geral, e podem ser validados por diferentes meios de emissão e validação jurídica de atestados médicos, como por exemplo: 

atestados médicos que já são emitidos e/ou validados de forma eletrônica, por meio de plataformas diversas, e que já podem, inclusive, ser comunicados à Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), vinculada ao SUS; 

atestados médicos impressos, emitidos simplesmente por meio físico, através de assinatura também física e presencial, acompanhada de carimbo; 

atestados assinados e validados por meio de plataformas digitais legalmente autorizadas a operar no país para certificar e validar assinaturas e documentos eletrônicos. 

A Resolução CFM 2.382/2024 vem se inserir nesse mercado já dinâmico criando um monopólio cartorial para emissão de atestados médicos, conforme consta do artigo 3º: “os atestados emitidos ou verificados por meio da plataforma Atesta CFM serão considerados válidos em todo o território nacional e produzirão os efeitos legais que deles se espera”. 

O mesmo artigo 3º, em seu parágrafo único, dispõe que “os atestados que excecionalmente forem emitidos em papel e com elementos de segurança gerados pela plataforma Atesta CFM gozarão das mesmas garantias dos atestados gerados digitalmente”. 

O artigo 10º da resolução deixa evidente que o CFM tem consciência dos riscos embutidos no monopólio criado ao dispor que o site do Conselho Federal de Medicina deve oferecer gratuitamente o recurso de validação de atestados a todos os interessados, por meio de protocolo seguro, sem interrupções e excelente desempenho. 

A pergunta que fica é: quem fiscalizará se isso ocorre? Qual a garantia de que o CFM respeitará sua própria norma? O que ocorrerá nos períodos em que o site não funcionar? 

Os artigos 12 a 15 da resolução consolidam o monopólio inconstitucional e ilegal criado para a certificação digital de atestados médicos. O artigo 12 afirma que os atestados emitidos por outras plataformas digitais somente serão considerados válidos quando integrados ao ecossistema Atesta CFM, a ser disponibilizado gratuitamente pelo Conselho, conforme regras a serem definidas por Instrução Normativa do CFM. O artigo 13 dispõe que após o período de 180 dias a partir da data de publicação da resolução atestados emitidos pelas plataformas existentes somente serão considerados válidos quando integrados ao referido ecossistema. 

Finalmente, o artigo 14 fecha o pacote monopolista, inconstitucional e ilegal ao afirmar que “pessoas jurídicas que tiverem interesse na utilização do serviço avançado de validação de atestado da plataforma Atesta CFM deverão contratá-lo em site específico do CFM, mediante a formalização do termo de adesão e o pagamento do preço público do serviço”. Ou seja, cria um preço público por meio de resolução infralegal de autarquia corporativa, referente a um serviço público essencial inventado pelo CFM em evidente violação às suas competências legais. 

Como se não bastasse, o §1º do artigo 14 prevê que o valor do serviço será definido por meio de Instrução Normativa, afrontando a segurança jurídica dos profissionais de saúde e de um mercado já consolidado, e deixando ao livre arbítrio deste órgão de classe o estabelecimento de um preço público por um serviço essencial inventado do nada e para o qual não está legalmente habilitado para prestar. 

O artigo 15 da resolução reforça o monopólio ao proibir aos médicos a utilização dos atuais portais ou plataformas que existem, geridos por instituições ou empresas no Brasil. O uso das plataformas existentes somente será permitido aos médicos se estas instituições do mercado nacional de certificação e validação de documentos e assinaturas eletrônicas tiverem firmado com o CFM o termo de adesão previsto na resolução. 

Faz-se aqui a seguinte mágica: o CFM cria uma nova obrigação abusiva e a transforma, do nada, em uma obrigação de “ética profissional”. Assim, obriga a adesão de todos os médicos do país à sua plataforma e garante o monopólio. 

No entanto, essa nova exigência não tem nada a ver com ética profissional ou com o desempenho da profissão médica, mas sim com interesses de exercício de poder político e econômico desse órgão de classe que não foi criado legalmente para gerenciar plataformas de certificação eletrônica de documentos no Brasil. 

Outro ponto que merece atenção na norma é o fato de que a administração da plataforma Atesta CFM caberá a uma Comissão Permanente de Acompanhamento (CPA), composta tão somente por conselheiros e funcionários do CFM. Estão excluídos representantes de usuários, do Ministério da Saúde ou de outros grupos de interesse sobre a referida plataforma que reunirá dados pessoais sensíveis de milhões de brasileiros. 

Em síntese, são esses os termos da resolução. As inconstitucionalidades e ilegalidades são inúmeras, e serão listadas nos itens subsequentes. 

Violações constitucionais 

A Resolução CFM 2.382/2024 viola um conjunto expressivo de direitos constitucionais que serão sintetizados abaixo: 

Violação do princípio da legalidade: versa sobre conteúdo sobre o qual o CFM não possui competência legal – cria obrigação primária aos médicos e inventa um preço público para serviço essencial sem previsão legal. A lei que criou o CFM não lhe dá o poder de criar tal obrigação ou preço público, além de que o texto da resolução afronta outros direitos fundamentais inscritos na Constituição Federal e vai contra leis que já regulam, de forma diferente, alguns dos conteúdos tratados na resolução. 

Violação do direito de livre exercício de profissão (CF, Art. 5º, XIII): não há previsão legal que autorize o CFM a impor aos médicos a emissão de seus documentos essenciais de trabalho por meio de plataforma digital do CFM. 

Violação do direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (CF, Art. 5º, X): a plataforma está sendo criada para armazenar e tratar dados de todas as informações constantes de todos os atestados médicos emitidos por todos os médicos do Brasil. Caso seja levada adiante essa proposta, será um dos maiores bancos de dados pessoais do mundo, a reunir informações sensíveis e ultrassensíveis de saúde. O potencial econômico, político e social de uma plataforma desta envergadura é incomensurável e não deve ficar sob a gestão e responsabilidade de uma instituição corporativa de médicos. 

Violação do direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais (CF, Art. 5º, LXXIX): esse dispositivo constitucional assegura o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais. Os dados que estarão disponíveis na plataforma Atesta CFM são dados pessoais sensíveis, que merecem proteção especial. O CFM está criando um monopólio artificial de dados pessoais sensíveis de saúde, a serem reunidos em uma plataforma do CFM, gerenciados e sob a guarda de pessoas que não estão legalmente habilitadas e nem são juridicamente aptas e/ou legalmente competentes para deter e tratar tais dados sensíveis. 

Violação dos princípios da administração pública (CF, Art. 37, caput): o CFM, ao criar, por meio de ato normativo infralegal que exorbita o poder de atuação a ele atribuído legalmente, uma obrigação extraordinária e que não guarda relação com a ética ou com o bom desempenho do exercício profissional, fere os princípios da legalidade e da moralidade administrativa. A resolução também viola o princípio da impessoalidade, uma vez que o Conselho passará a ter acesso não anonimizado a todos os documentos médicos emitidos por todos os médicos do país sobre todos os pacientes do Brasil. Fere também o princípio da publicidade, uma vez que não há qualquer transparência sobre vários aspectos relacionados à coleta, armazenamento, tratamento e disponibilização dos dados que estarão na plataforma Atesta CFM (estando inclusive abertamente prevista a monetização destes dados). Finalmente, fere o princípio da eficiência, uma vez que já há um amplo mercado de certificação de documentos digitais em funcionamento no país, que garante concorrência, preços acessíveis, segurança e eficiência ao sistema. 

Violação das competências constitucionais do Ministério da Saúde como direção única do SUS no âmbito federal: no nível nacional, o Ministério da Saúde é a direção única do SUS e a ele compete a gestão do Sistema Único de Saúde. Conforme dados de demografia médica no Brasil, estima-se que 21% dos médicos atuam só no setor público e 51% atuam nos setores público e privado concomitantemente. Isso quer dizer que mais de 70% dos médicos brasileiros atuam no SUS, que já possui sistemas digitais próprios de gestão e validação de dados em saúde. Se a norma do CFM entrar em vigência, esses médicos do SUS terão que, obrigatoriamente, validar seus documentos médicos no sistema do CFM, ao invés de se utilizarem dos sistemas próprios do SUS, já regulamentados pelo ministério, ou de outros sistemas igualmente confiáveis e já existentes no país. 

Ilegalidades 

Além dos vícios constitucionais citados, a Resolução CFM 2.382/2024 também possui vícios de legalidade por violar dispositivos das seguintes leis federais vigentes, que não serão aprofundados por falta de espaço: 

Violação da Lei 3.268/1957 (lei que cria o CFM): no que se refere ao abuso de poder regulatório, o CFM viola sua própria lei de criação, que não delega ao Conselho o poder de regular sobre validação de documentos eletrônicos no país e nem de ferir a autonomia médica por meio de obrigações que não guardam relação com a ética médica ou com o desempenho profissional. 

Violação da Lei 14.063/2020 (lei de assinaturas eletrônicas): conforme previsto no artigo 3º desta lei, as assinaturas eletrônicas são classificadas em três tipos (simples, qualificadas e avançadas), e todas elas serão consideradas válidas e com alto grau de confiabilidade. Além disso, conforme previsto no artigo 13 desta norma legal, que trata especificamente das assinaturas eletrônicas em documentos de interesse à saúde pública, compete ao Ministério da Saúde regulamentar quais os receituários de medicamentos e atestados médicos que devem ser subscritos por assinatura eletrônica qualificada do profissional de saúde. Também prevê que as exigências de assinatura eletrônica qualificada não se aplicam aos atos internos do ambiente hospitalar, incluindo aí, portanto, os atestados médicos emitidos em ambiente hospitalar dos sistemas público e privado. 

Violação da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência): o CFM, ao publicar a Resolução 2.382/2024, coloca-se ao mesmo tempo como regulador do mercado (obriga médicos a utilizarem seu sistema) e fornecedor do serviço que tornou obrigatório (plataforma Atesta CFM). Evidente, assim, o conflito de interesses e o abuso de sua posição dominante sobre os médicos. O CFM, que deveria fiscalizar a ética e o desempenho profissional e adotar procedimentos disciplinares para os casos de falsidade ou desvios éticos verificados em atestados médicos, passa a ser o validador cartorial de documentos e fiscalizador de sua própria plataforma, gerando um cenário de autofiscalização que compromete o princípio da impessoalidade no exercício de seu poder de polícia. Além disso, a resolução cria barreiras de entrada no mercado de plataformas já existentes de emissão de atestados médicos, prejudicando a livre concorrência e a livre iniciativa, em violação à Lei 12.529/2011 (Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência). 

Violação da Lei 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica): A Resolução 2.382/24 foi elaborada sem a devida Análise de Impacto Regulatório (AIR), o que constitui uma clara violação à Lei 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabelece garantias de livre mercado no Brasil. 

Violação da Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados): conforme previsto no artigo 11, I, da LGPD, o tratamento de dados pessoais sensíveis somente pode ocorrer quando o titular ou seu responsável legal consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas. Sem o consentimento do titular dos dados pessoais, estes dados somente podem ser compartilhados em casos específicos listados no inciso II do mesmo artigo 11 da LGPD. O compartilhamento destes dados com o CFM, que será obrigatório a partir da criação da plataforma Atesta CFM, não se encaixa em nenhuma das hipóteses legais previstas no inciso II do Art. 11 da LGPD. 

Violação das leis 3268/1957 (lei que cria o CFM) e 12.514/2011(lei que trata das contribuições devidas aos conselhos profissionais em geral): há uma evidente cobrança indevida de preço público, agravada pela ilegalidade na oferta de serviço de compartilhamento de dados pessoais sensíveis com terceiros. A Lei 3.268/1957 prevê em seu artigo 11 as rendas permitidas ao CFM e lá não está prevista a possibilidade do Conselho aferir renda por meio da criação de serviço público essencial não previsto em lei. Trata-se de abuso de poder regulatório do CFM, visando a aferição ilegal de renda a partir da criação de um serviço público para o qual o CFM não foi criado para prestar. O artigo 4º da Lei 12.514/2011 prevê expressamente que qualquer outra cobrança que não as ali expressamente previstas somente poderiam ser feitas pelos Conselhos por meio de leis específicas, que não existem. 

Com a palavra, os órgãos de controle 

As inconstitucionalidades e ilegalidades são diversas e graves. Espera-se que os órgãos de controle competentes e os interessados em geral adotem as medidas administrativas e judiciais cabíveis junto aos órgãos administrativos e judiciais competentes para a anulação da Resolução CFM 2.382/2024, visto que a entrada em vigor desta norma ensejará danos significativos ao sistema de saúde brasileiro e à segurança jurídica nacional, fragilizando pacientes, médicos, empresas que atuam no setor e o próprio Ministério da Saúde. 


*Fernando Aith é professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Paris. Diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP.


Assª. Rosana Duda

Por Paulino Andrade/FN  

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