Boaventura de Sousa Santos aponta a insatisfação popular como fruto da
expansão da classe média brasileira, que ficou mais exigente. Para ele,
só uma reforma política profunda pode evitar que povo volte às ruas.
Os protestos no Brasil perderam intensidade, mas, se o governo não der
uma resposta rápida às reivindicações do povo, podem voltar ainda mais
fortes – e de forma incontrolável. O alerta é do português Boaventura de
Sousa Santos, doutor em sociologia pela Universidade de Yale (EUA) e
diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
(Portugal).
Autor de estudos sobre emancipação social, direitos coletivos e
democracia participativa, ele vê a onda de indignação que tomou as ruas
do país como fruto das mudanças vividas pela sociedade brasileira nas
últimas décadas. A classe média, afirma, cresceu e com ela as demandas
dos cidadãos por melhores serviços públicos ganharam força.
Para Boaventura, o Congresso está “divorciado das prioridades dos
cidadãos” e, por isso, uma reforma política se faz necessária. “Há
medidas de emergência que têm de ser tomadas, mas nada disso é possível
se não houver uma reforma política profunda. Neste momento todo o
sistema político tende a perverter e a inverter as suas prioridades”,
afirma em entrevista à DW Brasil.
Deutsche Welle: Como o senhor avalia a onda de protestos?
Boaventura de Sousa Santos: As manifestações foram uma
surpresa tanto no plano interno como no plano internacional. Tudo levava
a crer que tudo no Brasil estava indo bem. Internamente, os próprios
partidos, especialmente o do governo, foram apanhados de surpresa. O que
foi surpresa foi o motivo para que a explosão ocorresse. Havia um
mal-estar, e ele resulta do êxito das políticas que foram instituídas no
Brasil a partir de 2003 [quando Lula assumiu o poder] e que fizeram com
que 40 milhões de pessoas entrassem para a classe média.
Protestos foram realizados em cidades brasileiras e no exterior
Elas criaram expectativas não só no que diz respeito à sua
vida, mas também ao modo como se posicionam na sociedade, ao modo como
usam os serviços públicos. E esses 40 milhões começaram a ver que, nos
últimos tempos, pelo menos, havia uma certa estagnação dessas políticas.
Os serviços públicos não acompanharam as transformações sociais.
A chamada "classe C" ficou mais exigente?
Eu penso que sim, pois as políticas de inclusão realizadas nos últimos
dez anos atingiram seu limite e as formas de participação não são hoje
tão eficazes quanto eram. Além disso, o serviço público não se
desenvolveu como deveria. O caso da saúde é significativo. Por outro
lado, num país que tem uma tradição de movimentos sociais fortes, eles
viram suas atividades nos últimos tempos se tornarem bastante
restringidas. Por isso começou a haver uma certa frustração quanto às
prioridades do governo e, naturalmente, um desgaste.
Que medidas o governo Dilma deveria tomar para atender às exigências da população?
A medida fundamental é uma reforma política. Fica evidente que há
medidas de emergência que têm de ser tomadas, mas nada disso é possível
se não houver uma reforma política profunda, porque neste momento todo o
sistema político tende a perverter e a inverter as suas prioridades.
Dilma tomou essa medida corajosa, de propor uma revisão constitucional,
mas o Congresso não tem grande vontade política para uma reforma
política profunda.
As respostas que o governo e o Congresso deram até agora não são satisfatórias?
Como é que o Congresso é capaz de aprovar num prazo de uma semana tantas
leis e questões importantes, como a [tipificação da] corrupção como
crime hediondo? Essa correria tem um lado positivo e um lado negativo.
Isso mostra que o Congresso só se move se houver pressão popular.
Portanto, esse é o lado negativo: o Congresso está divorciado das
prioridades dos cidadãos e só acorda quando os cidadãos o obrigam a
acordar. É por isso que é necessária uma reforma política.
Sousa Santos diz que existe uma crise de representatividade no sistema político brasileiro e de outros países
Para o senhor, quem são os manifestantes?
As manifestações são muito importantes para pressionar as instituições,
os partidos e os governos, mas elas não fazem propriamente uma
formulação política. O que elas fazem é pressão para que haja formulação
política. Vimos no Brasil como as agendas eram tão diversas quanto a
composição das classes presentes nos protestos. Houve uma forte presença
da juventude. As manifestações têm uma composição e, misturadas nelas,
há forças aproveitadoras que tentaram tirar dividendos contra o PT. Mas
elas são uma minoria. É uma insatisfação popular, sobretudo das camadas
mais jovens, contra uma política que não responde aos seus anseios.
É possível manter uma mobilização de massa a longo prazo?
Mesmo nos casos dos países que ela se mantém durante mais tempo, como durante o
Occupy,
nos EUA, e agora no Egito, tudo acontece por etapas. Portanto, há
momentos de refluxo. E eu penso que, no caso brasileiro, ela não se
aguenta neste momento, embora possa vir a explodir mais tarde. Neste
momento há uma certa espera, uma espera com esperança de que alguma
coisa se faça. Se ela não se fizer, a situação pode voltar, pode até,
aliás, ser mais incontrolável. Se não houver uma reposta rápida a estas
reivindicações, o refluxo atual voltará eventualmente mais incontrolável
e mais forte.
Muitos manifestantes nas ruas levantaram uma bandeira
antipartidarista. Existe atualmente uma crise de representatividade no
sistema político brasileiro?
Acho que sim. E neste momento não só no [sistema político] brasileiro,
mas também no europeu. E ocorre fundamentalmente do fato de que os
governos hoje estão capturados pelo capital financeiro internacional, se
ver bem, em função das exigências do capital financeiro. O próprio
Brasil compromete uma parte significativa de sua arrecadação para o
pagamento do serviço da dívida. E este também é o caso da Europa. No
fundo, é isso que está criando essa crise de representação, na medida em
que os cidadãos não se sentem representados pelos seus representantes e
é isso que faz com que as pessoas venham para a rua.
Para Sousa Santos, o Congresso Nacional está divorciado das prioridades dos cidadãos
As manifestações foram, de certa forma, uma demonstração de
decepção com o governo. Esse governo do PT, apesar das medidas de
inclusão social, perdeu a credibilidade?
Não. O problema é que, enfim, é um governo de esquerda que, no entanto,
tem uma coligação problemática, dada a organização partidária no Brasil.
O problema é que os brasileiros conhecem muito bem o que foram as
políticas de direita [dos governos] anteriores, nenhum deles realizou as
políticas de inclusão social que agora têm lugar. E, portanto, há um
certo descrédito na política em seu conjunto. O PT e o governo da
presidente Dilma têm uma crise de legitimidade a resolver. E só podem
resolver com mais democracia, com mais políticas de inclusão, com mais
dinheiro para os cidadãos e menos para as grandes empreiteiras e para o
grande capital financeiro internacional.
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